terça-feira, 4 de agosto de 2009

"Ponto de Mutação" parte 2


Texto do livro de Fritjjof Capra "Ponto de Mutação"

Para entender nossa multifacetada crise cultural, precisamos adotar uma perspectiva extremamente ampla e ver a nossa situação no contexto da evolução cultural humana. Temos que transferir nossa perspectiva do final do século XX para um período de tempo que abrange milhares de anos; substituir a noção de estruturas sociais estáticas por uma percepção de padrões dinâmicos de mudança. Vista desse ângulo, a crise apresenta-se como um aspecto da transformação. Os chineses, que sempre tiveram uma visão inteiramente dinâmica do mundo e uma percepção aguda da história, parecem estar bem cientes dessa profunda conexão entre crise e mudança. O termo que eles usam para "crise", wei-ji, é composto dos caracteres: "perigo" e "oportunidade".
Os sociólogos ocidentais confirmaram essa intuição antiga. Estudos de períodos de transformação cultural em várias sociedades mostraram que essas transformações são tipicamente precedidas por uma variedade de indicadores sociais, muitos deles idênticos aos sintomas de nossa crise atual. Incluem uma sensação de alienação e um aumento de doenças mentais, crimes violentos e desintegração social, assim como um interesse maior na prática religiosa; tudo isso foi também observado em nossa sociedade na década passada. Em tempos de mudança cultural histórica, esses indicadores tendem a manifestar-se de uma a três décadas antes da transformação central, aumentando em freqüência e intensidade à medida que a transformação se avizinha, e novamente declinando após sua ocorrência 10.
As transformações culturais desse gênero são etapas essenciais ao desenvolvimento das civilizações. As forças subjacentes a esse desenvolvimento são complexas, e os historiadores estão longe de elaborar uma teoria abrangente da dinâmica cultural; mas parece que todas as civilizações passam por processos cíclicos semelhantes de gênese, crescimento, colapso e desintegração. O gráfico seguinte mostra esse padrão nas principais civilizações em torno do Mediterrâneo ¹¹.
Entre os mais notáveis, ainda que mais hipotéticos, estudos dessas curvas de ascensão e queda de civilizações cumpre citar a importante obra A study of history ¹², de Arnold Toynbee. Segundo Toynbee, a gênese de uma civilização consiste na transição de uma condição estática para a atividade dinâmica. Essa transição pode ocorrer espontaneamente, através da influência de alguma civilização já existente, ou através da desintegração de uma ou mais civilizações de uma geração mais antiga. Toynbee vê o padrão básico na gênese das civilizações como um padrão de interação a que chama "desafio-e-resposta". Um desafio do ambiente natural ou social provoca uma resposta criativa numa sociedade, ou num grupo social, a qual induz essa sociedade a entrar no processo de civilização.

"Um estudo de história”. (N. do T.)

A civilização continua a crescer quando sua resposta bem-sucedida ao desafio inicial gera um ímpeto cultural que leva a sociedade para além de um estado de equilíbrio, que então se rompe e se apresenta como um novo desafio. Desse modo, o padrão inicial de desafio-e-resposta é repetido em sucessivas fases de crescimento, pois cada resposta bem-sucedida produz um desequilíbrio que requer novos ajustes criativos.

O ritmo recorrente no crescimento cultural parece estar relacionado com processos de flutuação que têm sido observados ao longo dos tempos e sempre foram considerados parte da dinâmica fundamental do universo. Segundo os antigos filósofos chineses, todas as manifestações da realidade são geradas pela interação dinâmica entre dois pólos de força: o yin e o yang. Heráclito, na Grécia antiga, comparou a ordem do mundo a "um fogo eternamente vivo que se acende e apaga conforme a medida". Empédocles atribuiu as mudanças no universo ao fluxo e refluxo de duas forças comple-mentares, a que chamou "amor" e "ódio".
A idéia de um ritmo universal fundamental também foi expressa por numerosos filósofos dos tempos modernos. Saint-Simon via a história das civilizações como uma série de períodos "orgânicos" e "críticos" que se alternavam; Herbert Spencer considerava que o universo passa por uma série de "integrações" e "diferenciações"; e Hegel entendia a história humana como um desenvolvimento em espiral que parte de uma forma de unidade, passa por uma fase de desunião e desta para a reintegração num plano superior. Com efeito, a noção de padrões flutuantes parece ser sempre extremamente útil para o estudo da evolução cultural.
Depois de atingirem o apogeu de vitalidade, as civilizações tendem a perder seu vigor cultural e declinam. Um elemento essencial nesse colapso cultural, segundo Toynbee, é a perda de flexibilidade. Quando estruturas sociais e padrões de comportamento tornam-se tão rígidos que a sociedade não pode mais adaptar-se a situações cambiantes, ela é incapaz de levar avante o processo criativo de evolução cultural. Entra em colapso e, finalmente, desintegra-se. Enquanto as civilizações em crescimento exibem uma variedade e uma versatilidade sem limites, as que estão em processo de desintegração mostram uniformidade e ausência de inventividade. A perda de flexibilidade numa sociedade em desintegração é acompanhada de uma perda geral de harmonia entre seus elementos, o que inevitavelmente leva ao desencadeamento de discórdias e à ruptura social.
Entretanto, durante o doloroso processo de desintegração, a criatividade da sociedade — sua capacidade de resposta a desafios — não se acha completamente perdida. Embora a corrente cultural principal tenha se petrificado após insistir em idéias fixas e padrões rígidos de comportamento, minorias criativas aparecerão em cena e darão prosseguimento ao processo de desafio-e-resposta. As instituições sociais dominantes recusar-se-ão a entregar seus papéis de protagonistas a essas novas forças culturais, mas continuarão inevitavelmente a declinar e a desintegrar-se, e as minorias criativas poderão estar aptas a transformar alguns dos antigos elementos, dando-lhes uma nova configuração. O processo de evolução cultural continuará então, mas em novas circunstâncias e com novos protagonistas.
Os padrões culturais descritos por Toynbee parecem ajustar-se muito bem à nossa situação atual. Ao observarmos a natureza dos nossos desafios — não os vários sintomas de crise, mas as mudanças subjacentes ao nosso meio ambiente natural e social —, podemos reconhecer a confluência de diversas transições ¹4. Algumas delas estão relacionadas com os recursos naturais, outras com valores e idéias culturais; algumas são partes de flutuações periódicas, outras ocorrem dentro de padrões de ascensão-e-queda. Cada um desses processos tem uma periodicidade distinta, mas todos eles envolvem períodos de transição que acontece estarem coincidindo no presente momento. Entre essas transições existem três que abalarão os alicerces de nossas vidas e afetarão profundamente o nosso sistema social, econômico e político.
A primeira transição, e talvez a mais profunda, deve-se ao lento, relutante, mas inevitável declínio do patriarcado. A periodicidade associada ao patriarcado é de, pelo menos, três mil anos, um período tão extenso que não podemos dizer se estamos diante de um processo cíclico ou não, pois são mínimas as informações de que dispomos acerca das eras pré-patriarcais. O que sabemos é que, nestes últimos três mil anos, a civilização ocidental e suas precursoras, assim como a grande maioria das outras culturas, basearam-se em sistemas filosóficos, sociais e políticos "em que os homens — pela força, pressão direta, ou através do ritual, da tradição, lei e linguagem, costumes, etiqueta, educação e divisão do trabalho — determinam que papel as mulheres devem ou não desempenhar, e no qual a fêmea está em toda parte submetida ao macho" .
O poder do patriarcado tem sido extremamente difícil de entender por ser totalmente preponderante. Tem influenciado nossas idéias mais básicas acerca da natureza humana e de nossa relação com o universo — a natureza do "homem" e a relação "dele" com o universo, na linguagem patriarcal. Era o único sistema que, até data recente, nunca tinha sido abertamente desafiado em toda a história documentada, e cujas doutrinas eram tão universalmente aceitas que pareciam constituir leis da natureza; na verdade, eram usualmente apresentadas como tal. Hoje, porém, a desintegração do patriarcado tornou-se evidente. O movimento feminista é uma das mais fortes correntes culturais do nosso tempo, e terá um profundo efeito sobre a nossa futura evolução.
A segunda transição, que terá um profundo impacto sobre nossa vida, nos é imposta pelo declínio da era do combustível fóssil. Os combustíveis fósseis — carvão, petróleo e gás natural — têm sido as principais fontes de energia da moderna era industrial, e, quando se esgotarem, essa era chegará ao fim. Numa ampla perspectiva histórica da evolução cultural, a era do combustível fóssil e a era industrial são apenas um breve episódio, um pico estreito em torno do ano 2000 em nosso gráfico. Os combustíveis fósseis estarão esgotados por volta de 2300, mas os efeitos econômicos e políticos desse declínio já estão sendo sentidos. Esta década será marcada pela transição da era do combustível fóssil para uma era solar, acionada por energia renovável oriunda do Sol; essa mudança envolverá transformações radicais em nossos sistemas econômicos e políticos.

Combustíveis fósseis são resíduos de plantas fossilizadas — que foram enterradas na crosta da terra e chegaram a seu atual estado através de reações químicas ocorridas durante longos períodos de tempo. (N. do A. )

A terceira transição também está relacionada com valores culturais. Envolve o que hoje é freqüentemente chamado de "mudança de paradigma'' — uma mudança profunda no pensamento, percepção e valores que formam uma determinada visão da realidade . O paradigma ora em transformação dominou nossa cultura durante muitas centenas de anos, ao longo dos quais modelou nossa moderna sociedade ocidental e influenciou significativamente o resto do mundo. Esse paradigma compreende um certo número de idéias e valores que diferem nitidamente dos da Idade Média; valores que estiveram associados a várias correntes da cultura ocidental, entre elas a revolução científica, o Iluminismo e a Revolução Industrial. Incluem a crença de que o método científico é a única abordagem válida do conhecimento; a concepção do universo como um sistema mecânico composto de unidades materiais elementares; a concepção da vida em sociedade como uma luta competitiva pela existência; e a crença do progresso material ilimitado, a ser alcançado através do crescimento econômico e tecnológico. Nas décadas mais recentes, concluiu-se que todas essas idéias e esses valores estão seriamente limitados e necessitam de uma revisão radical.

Do grego "paradeigma", "padrão". (N. do A. )