sexta-feira, 30 de março de 2012

Somos Quilombo Rio dos Macacos



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sexta-feira, 16 de março de 2012

Civilização e identidade

O nascimento da civilização não se deu apenas no plano das técnicas, com a sedentarização, domesticação, sistemas de irrigação e distribuição de produção. O nascimento da civilização é o nascimento de uma identidade. Inicia-se a história. Separe-se no momento de sua aurora o “Eu” civilizado do “Outro” selvagem/animal. A organização do pensamento religioso é uma ilustração para tal afirmação. Diz-se que mesmo no Paleolítico já existem referências a um mundo sobrenatural. Afirma-se isso por meio de pinturas rupestres interpretadas como deuses de
fertilidade/fecundidade. Nestas aparecem figuras que se assemelham a uma mistura de seres humanos com animais, figuras de animais enormes e figuras do que poderia se chamar de Deusa-mãe. Por vezes essa aparece em posições sexuais com animais ou mesmo seres híbridos. Tais pinturas, além de mostrar o desenvolvimento de um pensamento abstrato nos seres humanos “fora da história”, permitem a visualização de uma relação na qual é difícil separar o “eu” ser humano do “outro” animal/floresta. Uma relação na qual vê-se, por exemplo, uma relação entre humano e animal não humano de temor, enfrentamento, mas também mistura, apreciação, reflexo.


Com o Neolítico, as figuras se transformam: os animais não humanos, agora domesticados, passam a um papel marginal. Caracterizam-se de maneira efetiva deuses, não só se assemelhando a seres humanos, mas a homens. O pensamento abstrato civilizatório se constrói,
também, por meio da construção de uma identidade e da afirmação de uma identidade de homem civilizado. Aquele mesmo que se assemelha aos deuses. O conjunto de deuses especializa-se. Cada gérmen de cidade possui seus deuses específicos, por vezes o combate entre deuses torna-se o combate efetivo entre cidades. A abstração e a realidade imbricam-se. Os seres humanos cada vez mais se especializam. Ou seja, a forma igualitária de relação entre integrantes de um bando e suas atividades é suprimida por identidades/especialidades. Não somos todxs caçadorxs-coletorxs, “sou” sacerdote, “sou” agricultor, “sou” soldado, “sou” artesão, “sou” rei. Importante salientar que as especialidades/identidades não se afirmam horizontamente, mas se impõe violentamente uma sobre as outras. Afinal, quando se estipula o “eu” estipula-se o “outro”.

Tal construção de identidades assume um caráter multilinear. A construção da identidade civilizatória é sempre uma submissão a uma força externa e uma submissão a uma suposta essência interna. Aquele que se assume como rei, é compreendido como rei, pois é submetido à identidade “rei” pelos deuses. (Apesar de poder em alguns casos se assemelhar a um deus, o rei, hierarquicamente, ainda é submisso a esses). Aquele que se assume “súdito”, é compreendido como súdito pelo rei e pelos deuses. As identidades/especialidades se hierarquizam violentamente por todo o desenvolvimento do que conhecemos como civilização. Mas em algumas comunidades o sobrenatural ainda permite afirmar que depois da vida aquele que é súdito e aquele que é rei podem habitar o mesmo terreno dos mortos. Um “paraíso” que assemelhasse a uma recompensa pela vida de súdito e, ao mesmo tempo, um “paraíso” que legitima a subordinação.

Passa-se assim de forma grosseira para os tempos atuais, nos quais as identidades se multiplicam, assim como se multiplicam as formas de coloca-las expostas ao julgamento ou apreciação de outras identidades. Mesmo nos agrupando sob “comunidades” (“somos” ciclistas de fixa, “somos” fora-do-eixo, “somos” isso, “somos” aquilo) o que ocorre ainda é uma submissão a uma certa identidade e sua respectiva afirmação sobre outras identidades. Mesmo por meio de uma identidade “comum” o comum se perde. Mesmo existindo uma liberdade de escolher “quem eu sou” ainda estamos presos à necessidade de dizer “eu sou”.



A continuidade do papel da identidade no Neolítico, nos Impérios Despóticos, nas cidades gregas, aquele que liga o “eu” interior ao “eu” no mundo social, ou seja, aquele papel de definir a partir de quem “sou eu” o meu status social e meus respectivos méritos mantem-se vivo nos tempos atuais. O que diferencia nossos tempos atuais é a multiplicação de formas de afirmação/submissão ao “eu”. Exemplo são as diversas redes sociais e os diversos dispositivos que podem nos manter conectados quase que permanentemente a essas identidades. Nesse caso, em tempos de deus-capitalismo, nossas identidades tornam-se diretamente cifras para o rei-facebook.